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Memória, história e analogia: Correspondências entre Walter Benjamin e Eduardo Galeano

Published online by Cambridge University Press:  13 June 2022

Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero*
Affiliation:
Universidade do Estado de Minas Gerais, João Monlevade, Minas Gerais, Brazil
Joyce Conceição Gimenes Romero
Affiliation:
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil
*
*Corresponding author. Email: [email protected]
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Resumo

Este trabalho analisa comparativamente alguns aspectos convergentes da obra do pensador alemão Walter Benjamin (1892–1940) e do escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940–2015). Apresentam-se, assim, certas afinidades entre os dois autores no que diz respeito à proposição de uma crítica à história oficial, tal como concebida a partir das classes dominantes, em prol da recuperação da memória de grupos sociais submetidos à violência e à opressão. Destacam-se, ainda, correspondências metodológicas acerca do emprego de analogias e metáforas por ambos os autores.

Abstract

Abstract

This article comparatively analyzes some converging aspects of the work of the German thinker Walter Benjamin (1892–1940) and the Uruguayan writer Eduardo Galeano (1940–2015). Certain affinities are presented between the two authors with regard to the proposition of a critique of official history, as conceived from the ruling classes, in favor of recovering the memory of social groups subjected to violence and oppression. Also highlighted are the methodological correspondences on the use of analogies and metaphors by both authors.

Type
Epistemological and Historical Reflections on Latin American Studies
Creative Commons
Creative Common License - CCCreative Common License - BY
This is an Open Access article, distributed under the terms of the Creative Commons Attribution licence (http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/), which permits unrestricted re-use, distribution and reproduction, provided the original article is properly cited.
Copyright
© The Author(s), 2022. Published by Cambridge University Press on behalf of the Latin American Studies Association

“O passado é mudo? Ou continuamos sendo surdos?”.

A indagação de Eduardo Galeano, enunciada no prefácio de 2010 à sua obra As veias abertas da América Latina (Galeano Reference Galeano2015a, 7), permanece em aberto e ainda demanda respostas.

Verdade seja dita, o itinerário de colonizações, extermínios étnicos, guerras, ditaduras, insurreições e rebeliões reprimidas, dependência e superexploração socioeconômica, marginalização e aculturação que delineia a história latino-americana constitui, desde há muito, uma arena em que a memória dos subjugados encontra-se sempre em vias de ser esmagada pelas políticas sistemáticas de esquecimento amiúde levadas a cabo pelos “vencedores”—a dominação e o apagamento mnemônicos são recursos políticos desumanos e desumanizadores.

Por outro lado, a América Latina viu emergir, nas últimas décadas, uma multiplicidade de movimentos e processos sociais dispostos a fazer o passado falar e o presente ouvir—passos sem os quais nenhuma sociedade é capaz de urdir um futuro mais justo e humanamente digno.

Partindo de e retornando a essa problemática, propomo-nos a tecer uma aproximação teórico-política entre o pensador alemão Walter Benjamin (1892–1940) e o escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940–2015). Nesse sentido, trata-se de explorar certos rastros diagnosticados nesses autores que sinalizam, ao que nos parece, a existência entre ambos de certos influxos recíprocos—expressão cujo sentido aqui reelaboramos livremente face àquele que Max Weber lhe atribuíra.Footnote 1 Já de saída, pontuemos, então, a intersecção primeira: o fato de ter nascido Galeano no mesmo mês—setembro de 1940—em que Benjamin cometeria suicídio: uma curiosa e significativa afinidade.

Gostaríamos de assinalar, portanto, que se nos mostra possível e frutífera uma aproximação entre ambos os autores, desdobrada teoricamente em uma constelação de eixos conceituais interdependentes e, de fato, indissociáveis.

Em primeiro lugar, destaca-se a proposição radical de uma história a contrapelo; ou seja, a articulação de uma reescrita da história que, na contramão do discurso oficial, dedique-se a resgatar, politicamente, a memória dos vencidos a partir da identificação afetiva (einfühlung) para com estes.Footnote 2 Uma tal abordagem faz emergir do passado e irromper no presente uma fecunda e potente tradição dos oprimidos, tecida ao revés dos vencedores. Nas palavras do próprio Galeano (Reference Galeano2011b, 19), essa perspectiva—em que, consciente ou inconscientemente, o autor uruguaio traduz as elaborações benjaminianas—se insurge contra a uníssona e reacionária versão oficial, imposta desde cima pelas classes dominantes: “Los dueños del poder se refugian en el pasado, creyéndolo quieto, creyéndolo muerto, para negar el presente, que se mueve, que cambia; y también para conjurar el futuro. La historia oficial nos invita a visitar un museo de momias”.

Ademais, há tanto em Galeano quanto em Benjamin uma perspectiva, que aqui se gostaria de realçar, segundo a qual o marxismo—a abordagem materialista da história—deve se pautar por uma crítica imanente ao conceito de progresso. Esse viés, de maneira recíproca, parece atravessar o conjunto da obra de ambos em suas diferentes fases e especificidades históricas, espelhando-se e se iluminando mutuamente.

Por outro lado, destacar-se-á certa correspondência entre os dois autores no que tange à elaboração de reflexões calcadas em um procedimento analógico-metafórico, em oposição à hegemonia conceitual do lógico-discursivo, do analítico e do linear. Esse percurso metodológico se expressa mais contundentemente na tessitura de imbricações entre recortes imagéticos do passado histórico e o exame crítico do presente. Dessa forma, assinala Benjamin (Reference Benjamin2018, 762): “o historiador hoje tem que construir uma estrutura—filosófica—sutil, porém resistente, para capturar em sua rede os aspectos mais atuais do passado”. Galeano (Reference Galeano2015b, 371), por sua vez, no posfácio à obra As veias abertas da América Latina, intitulado “Sete anos depois” e redigido em 1978, afirma: “Em As veias, o passado sempre aparece convocado pelo presente, como memória viva de nosso tempo”.

Convém ainda observar que, na trilha dos autores aqui considerados, este trabalho não constitui uma análise rígida ou exaustiva, sendo avessa àquela clausura intelectiva que se regozija na assepsia metodológica e na fetichização do objeto como sujeito da verdade e da verdade como objeto sem sujeito. Na visceral formulação benjaminiana, “O que são desvios para os outros são para mim os dados que determinam a minha rota” (Benjamin Reference Benjamin2018, 759).

Afinidades entre Benjamin e Galeano

Se se considera a obra de Walter Benjamin, não obstante sua constituição fragmentária e sinuosa, como portadora de uma constelação conceitual cuja síntese articula certa concepção teórica e filosófica da história de modo inteligível e relativamente coeso, forçoso é admitir que a “defesa de um pensamento por analogias” (Otte Reference Otte2019, 183)—afinidades eletivas, correspondências, espelhamentos etc.—se destaca como uma de suas iluminações fundamentais.

Sob esse viés—e reiterando que, para Benjamin, “Método é caminho indireto, é desvio” (Reference Benjamin1984, 50)—propomo-nos aqui aplicar a construção teórica de caráter analógico preconizada por Walter Benjamin a certos contornos de sua própria obra, a fim de se esboçar uma reflexão de caráter aproximativo no que diz respeito a certas reciprocidades para com elementos composicionais presentes em outro autor de orientação marxista heterodoxa. Nesse sentido, apresentar-se-á um breve delineamento das correspondências teórico-políticas cristalizadas na obra do pensador alemão e na deste que é, reconhecidamente, um dos maiores representantes da tradição ensaística latino-americana, o uruguaio Eduardo Galeano.

Na verdade, o diagnóstico dessa reciprocidade não é novo, sem embargo, permanece quase inexplorado. As afinidades eletivas entre a obra de Benjamin e Galeano já haviam sido assinaladas por Michael Löwy em 1994, na edição de número 575 da revista Les Temps Modernes, em artigo intitulado: “‘À rebrousse-poil’: La conception dialectique de la culture dans les thèses de Walter Benjamin (1940). Ainda que Löwy (Reference Löwy2010–2011, 27) não extraia do espelhamento identificado entre os dois autores maiores desdobramentos, o rastro de sua sugestão é, todavia, promissor: “Galeano conhecia as Teses sobre a filosofia da história? Seja como for, é em termos quase benjaminianos que ele conclama à ‘celebração dos vencidos e não dos vencedores’, e à ‘salvaguarda de algumas de nossas mais antigas tradições’, como o modo de vida comunitário. Pois é ‘em suas mais antigas fontes’ que a América pode buscar e encontrar ‘suas forças vivas mais jovens; o passado diz coisas que interessam ao futuro’”.

Com efeito, a presente reflexão parte, em grande medida, do reconhecimento de que, tanto em Walter Benjamin quanto em Eduardo Galeano, há uma conjunção inextricável entre o passado coletivo e o do sujeito enraizada em uma apreensão política da história. Como assinala Otte (Reference Otte1999, 198), a respeito de Benjamin e em matiz hegeliano: “O sujeito está imerso nessa História, o sujeito é objeto, um ser que não se eleva sobre sua história, mas que se integra nela”. Tal imbricação entre os fragmentos da experiência subjetiva e a aspiração à totalidade do complexo histórico—esta, todavia, fatalmente contingenciada no átimo em que se lhe vislumbra a feição—é também assinalada, a propósito da episteme ensaística, por Theodor Adorno (Reference Adorno2012, 26), segundo o qual:

A relação com a experiência—e o ensaio confere à experiência tanta substância quanto a teoria tradicional às meras categorias—é uma relação com toda a história; a experiência meramente individual, que a consciência toma como ponto de partida por sua proximidade, é ela mesma já mediada pela experiência mais abrangente da humanidade histórica; é um mero autoengano da sociedade e da ideologia individualistas conceber a experiência da humanidade histórica como sendo mediada, enquanto o imediato, por sua vez, seria a experiência própria a cada um. O ensaio desafia, por isso, a noção de que o historicamente produzido deve ser menosprezado como objeto da teoria.

Os apontamentos de Adorno se coadunam, de fato, com a percepção comum a Benjamin e Galeano, que não depreciam, antes privilegiam o historicamente produzido como objeto de reflexão, considerando ainda e de certa forma que tudo é historicamente produzido.

Sob esse viés, certas afinidades biográficas entre os dois autores que constituem o cerne deste trabalho parecem-nos, sobremaneira, sugestivas. A experiência subjetiva de ambos, malgrado a distância cronológica e espacial que aí se observa, revela marcas profundas e fissuras incisivas engendradas por processos históricos em que as contradições sociais se mostram agudizadas. Em função disso, é possível identificar em um e outro a corporificação paralela de experiências tais como o exílio, o engajamento político, o embate do sujeito com a expansão imperialista e capitalista, o suicídio, o declínio de formas tradicionais de sociabilidade pré-moderna, a ascensão de e a resistência a regimes autoritários, a desesperança e a calamidade como horizonte e desafio histórico.

Além disso, ambos os autores elaboram uma crítica radical ao progresso, preconizando o resgate da tradição dos oprimidos—expropriados material e espiritualmente—como exigência sine qua non para a interrupção revolucionária da catástrofe continuada sob a marcha triunfal das classes dominantes. Como assinala o próprio Benjamin (Reference Benjamin1995, 174) em “Parque Central”: “Deve-se fundar o conceito de progresso na idéia da catástrofe. Que tudo “continue assim”, isto é a catástrofe. Ela não é o sempre iminente, mas sim o sempre dado”.

Com efeito, a partir de uma apropriação sui generis da teoria marxista, tanto no sentido teórico quanto prático, Benjamin e Galeano professam, de forma eminentemente herética e fragmentária, uma teoria filosófica da história assaz convergente.

Dessa forma, aquilo que assinala Adorno (Reference Adorno2012, 23), a respeito dos (re)conhecimentos articulados pela obra de Marcel Proust, bem pode ser transposto, mutatis mutandis, à produção tanto de Benjamin quanto de Galeano: “O parâmetro da objetividade desses conhecimentos não é a verificação das teses já comprovadas por sucessivos testes, mas a experiência humana individual, que se mantém coesa na esperança e desilusão. Essa experiência confere relevo às observações proustianas, confirmando-as ou refutando-as pela rememoração. Mas a sua unidade, fechada individualmente em si mesma, na qual entretanto se manifesta o todo, não poderia ser retalhada e reorganizada, por exemplo, sob as diversas personalidades e aparatos da psicologia ou da sociologia”.

De outra parte, a já assinalada proposição benjaminiana de se pensar a realidade por meio de procedimentos analógicos também encontra—sendo mesmo esta uma das hipóteses aqui postuladas—, por sua vez, uma correspondência na concepção teórica que se depreende e se cristaliza a partir de certos fragmentos da obra de Eduardo Galeano.

Convém, portanto, a esta altura da discussão, empreender um esforço de aproximação conceitual para com a especificidade dessa concepção analógica. Nesse sentido, diz-nos Maria Esther Maciel, apoiando-se em Michel Foucault, que, pelo menos até o século XVI, desempenhara a analogia um papel principal na constituição do conhecimento humano no ocidente. Segundo a autora: “Nesse contexto, de culto à identidade sem frestas, a analogia exerceu um papel soberano. A ela era dada a função de encadear, através de liames e junções, tanto as similitudes explícitas entre as coisas, quanto as mais secretas e sutis. O seu poder de conduzir à esfera do Mesmo elementos distantes, de infinitos lugares, era imprescindível para a legitimação desse saber pletórico e circular” (Maciel Reference Maciel1995, 96).

Com efeito, o protagonismo da via analógica do saber no desvelamento do mundo bem como sua permanência ainda que, em alguns momentos, subterrânea têm suas origens em confluências místico-religiosas diversas, todavia convergentes; tais como a tradição cabalística, de raiz judaica, e as sincréticas correntes herméticas que, partindo de elementos egípcios e mesopotâmicos, foi sendo reelaborada a partir do neoplatonismo, do pitagorismo, do orfismo e do gnosticismo, já dentro de um contexto de heterogeneidade cultural profunda e disputa político-religiosa em torno da construção de uma hegemonia do cristianismo no Império Romano.

No que tange a esse pensar analógico, a síntese de Octavio Paz (Reference Paz2003, 392) nos parece certeira:

La idea de la correspondencia universal es probablemente tan antigua como la sociedad humana. Es explicable: la analogía vuelve habitable al mundo. A la contingencia natural y al accidente opone la regularidad; a la diferencia y la excepción, la semejanza. El mundo ya no es un teatro regido por el azar y el capricho, las fuerzas ciegas de lo imprevisible: lo gobiernan el ritmo y sus repeticiones y conjunciones. Es un teatro hecho de acordes y reuniones en el que todas las excepciones, inclusive la de ser hombre, encuentran su doble y su correspondencia. La analogía es el reino de la palabra como, ese puente verbal que, sin suprimirlas, reconcilia las diferencias y las oposiciones. La analogía aparece lo mismo entre los primitivos que en las grandes civilizaciones del comienzo de la historia, reaparece entre los platónicos y los estoicos de la Antigüedad, se despliega en el mundo medieval y, ramificada en muchas creencias y sectas subterráneas, se convierte desde el Renacimiento en la religión secreta, por decirlo así, de Occidente: cábala, gnosticismo, ocultismo, hermetismo. La historia de la poesía moderna, desde el romanticismo hasta nuestros días, es inseparable de esa corriente de ideas y creencias inspiradas por la analogía.

Esse modo de apreensão da realidade que sobrevive ao milênio medieval—no âmbito da alquimia, por exemplo—, ainda que disperso e desigualmente manifesto em porções dos continentes europeu e asiático, se veria, entretanto, forçado a recuar provisoriamente, ao menos nas potências da Europa ocidental, frente à ascensão triunfante da Razão iluminista. Em contrapartida, a relativização e a crise das pretensões do saber analítico que irrompem em fins do século XVIII, a despeito de suas hiperbólicas ambições científicas, acabariam por conjurar uma vez mais esses antigos saberes então tidos como inexoravelmente superados pelo progresso do conhecimento racional e objetivo.

É sobretudo no âmbito de movimentos afins como o Romantismo, o Simbolismo e, posteriormente, o Surrealismo que a analogia ensaia intermitentemente seus renascimentos no universo espiritual europeu. Dentre as variegadas recuperações e ressignificações do pensamento analógico, algumas se cristalizam de maneira mais evidente, tais como a atração apaixonada de Charles Fourier, as correspondências de Baudelaire ou as afinidades eletivas de Max Weber.

Por certo, em Benjamin e em Galeano, as reciprocidades coagulam-se num sentido especificamente revolucionário, conjugando ora distintos fragmentos do passado que irrompem no presente—e que, desarticulando a continuidade histórica, dão voz aos silenciados—ora estilhaços da cultura cuja legalidade intrínseca microscopicamente capturada revela-se capaz de espelhar algo das macroestruturas que lhes abarcam de maneira totalizante. De modo convergente, a sugestão imagética de Octavio Paz (Reference Paz2003, 393) assinala: “Correspondencias verbales: La revolución es el crisol en el que se produce la amalgama de los distintos miembros del cuerpo social y su transubstanciación en otro cuerpo”.

De outra parte, o diagnóstico da afinidade entre os dois autores no que tange a uma gnosiologia analógica não se confunde com qualquer tentativa de pasteurizar ou, ainda, homogeneizar suas idiossincrasias. A subversão herética que os distingue, cada qual a sua maneira, é radicalmente avessa àquele eterno retorno do mesmo, por ambos, aliás, denunciado.

Na obra de Walter Benjamin, as elaborações teóricas que se valem das correspondências—temporais, culturais, sincrônicas, diacrônicas—tendem à cristalização naquilo que o próprio pensador designa quer como mônada quer como imagem dialética. Estas, por sua vez, constituiriam uma espécie de condensado de totalidade histórica construído dialeticamente; sendo sua legalidade interna articulada pela constelação de ideias cujas tensões, espelhamentos e contradições recíprocas são imageticamente paralisadas pelo método benjaminiano.

Em alternativa, em Eduardo Galeano, o pensamento por analogia se traduz amiúde pela referência à metáfora, a qual consiste, segundo Maciel (Reference Maciel1995, 102), em “uma espécie de analogia condensada”. Na obra do escritor uruguaio, as reciprocidades também exercem papel teórico desviante, ensejando imageticamente uma apreensão insubmissa do mundo, em tudo antípoda aos discursos autoproclamados oficiais. Para Galeano (Reference Galeano2011b, 59), “La realidad habla un lenguaje de símbolos. Cada parte es una metáfora del todo”. Àquele que está disposto a auscultar as contradições do mundo que aí está, se lhe abrem as possibilidades para transformá-lo:

Desamarrar as vozes, dessonhar os sonhos: escrevo querendo revelar o real maravilhoso, e descubro o real maravilhoso no exato centro do real horroroso da América.

Nestas terras, a cabeça do deus Elegguá leva a morte na nuca e a vida na cara. Cada promessa é uma ameaça; cada perda, um encontro. Dos medos nascem as coragens; e das dúvidas, as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade possível e os delírios, outra razão.

Somos, enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia. (Galeano Reference Galeano2011a, 123)

Enfim, se é verdade, como foi dito, que as afinidades aqui propostas entre a teoria filosófica da história dispersamente presente na obra de Benjamin e Galeano constituem uma elaboração dialética que não ignora as distâncias que separam os dois autores; não é menos certo que a América Latina de Eduardo Galeano (Reference Galeano2011a, 110), cujas catástrofes e alegrias o autor uruguaio viveu e contou—aquela a respeito da qual denuncia: “a democracia, que tem medo de recordar, nos adoece de amnésia; mas não se necessita ser Sigmund Freud para saber que não existe tapete que possa ocultar a sujeira da memória”—também se espelhou em Walter Benjamin, deixando marcas em um curto texto de sua autoria. Em uma resenha de 1929 sobre a obra Bartholomé de Las Casas: “Père des Indiens”, publicada por Marcel Brion em Paris em 1928, o crítico alemão sublinhou: “A história colonialista dos povos europeus começa com o processo pavoroso da conquista que transforma todo o novo mundo conquistado numa câmara de tortura. A colisão da soldadesca espanhola com os enormes tesouros de ouro e prata da América produziu uma disposição mental da qual ninguém consegue se inteirar sem ficar horrorizado” (Benjamin Reference Benjamin2013, 171).

Parece, portanto, que as veias abertas e jamais estancadas que levariam Galeano (Reference Galeano2015b, 387) a questionar se “Não tem sido a nossa história uma contínua experiência de mutilação e desintegração, disfarçada de desenvolvimento?” já haviam lampejado, ainda que por um átimo, no horizonte crepuscular de Walter Benjamin.

Walter Benjamin

A fim de viabilizar o exame das possíveis correspondências entre Walter Benjamin e Eduardo Galeano, faz-se necessário delinear, em seus contornos mais relevantes a nosso propósito, a feição singular do pensamento filosófico benjaminiano. Evidentemente, trata-se de um esboço cujos limites objetivos já estão postos pela própria natureza arredia e esquiva comum ao conjunto da obra do autor alemão, profundamente avessa à sistematização e à linearidade discursiva. Em relação a isso, Jeanne-Marie Gagnebin apropriadamente observa que “Benjamin nos deixa antes uma tentativa e uma exigência de reformulação teórica—da teoria marxista em particular—do que um corpo de doutrina positivo e sem ambiguidades” (Reference Gagnebin1993, 8–9).

De qualquer modo, parece-nos acertado considerar Benjamin, antes de tudo, um filósofo, na esteira do que sinalizam Gershom Scholem, Theodor W. Adorno e Michael Löwy (Reference Löwy2005, 13). Na realidade, gostaríamos de sustentar que, do todo da obra de Walter Benjamin, é possível depreender determinada teoria político-filosófica da história, que, sem embargo de ser assistemática, compõe, todavia, um conjunto constelar orgânico—isto é, a cristalização de uma série de conceitos, imagens e categorias relativamente estáveis cuja significação e funcionalidade se articulam de maneira interdependente, configurando uma organização em certa medida unitária.

Como pontua acertadamente Michael Löwy (Reference Löwy2005, 17) “a filosofia da história de Benjamin se apoia em três fontes muito diferentes: o Romantismo alemão, o messianismo judaico, o marxismo”. A partir da conjugação dessas três matrizes flagrantemente discordes, o autor costura sua síntese filosófica heterodoxa, fragmentária e singularíssima. Por outro lado, é importante ressaltar que não há rupturas completas no itinerário intelectual de nosso filósofo. Se a crítica às concepções hegemônicas da historiografia de sua época é reelaborada teoricamente por Benjamin a partir de sua incorporação do referencial provido pelo materialismo histórico em meados da década de vinte, não se pode, entretanto olvidar que a crítica ao progresso já se faz notar desde seus primeiros escritos de juventude, como na conferência “A vida dos estudantes”, de 1915. Sob essa ótica, observa Löwy (Reference Löwy1989, 86) que: “O pensamento de Benjamin avança como o quadro de um artista que não apaga jamais seus traços, mas os cobre a todo instante com uma camada nova de tinta, parecendo ora seguir o contorno dos primeiros esboços, ora ultrapassá-los em direção a uma forma inesperada”.

Pois bem, dentre os poucos textos benjaminianos em que o autor nos fornece uma visão mais abrangente do conjunto de suas concepções, destaca-se incontornavelmente, além das Teses de 1940, o ensaio “Eduard Fuchs, colecionador e historiador”. Esse, com efeito, fora sugerido e encomendado por Max Horkheimer, por volta de 1933, para a revista do Instituto de Pesquisa Social e demoraria mais de três anos para ser concluído—tendo sido publicado no número 6 do periódico, no ano de 1938, em Nova Iorque. Sobre a gestação desse ensaio, Leandro Konder (Reference Konder1999, 89–90) comenta que

o instituto passou a cobrar de Benjamin, com insistência, um trabalho que lhe encomendara a respeito de Eduard Fuchs, um jornalista alemão social-democrata que tinha se tornado muito conhecido, ainda nos tempos do império, quando pegara dez meses de cadeia por “ofensa ao Kaiser”. Depois de ter sido diretor do jornal Süddeutsche Postillon, Fuchs dedicou-se ao estudo da história da caricatura e da representação do erotismo nas artes figurativas; e preparou a edição de volumes com gravuras de Daumier e Gavarni. Benjamin, inicialmente, parecia pouco entusiasmado pela tarefa; mas acabou por enfrentá-la com gosto; e, quando terminou de escrever o artigo, no começo de 1937, havia redigido um texto rico e denso.

Benjamin esboça neste ensaio o estabelecimento de uma tradição marxista da “história da cultura”. Assim, a partir das lacunas ou impropriedades inerentes ao tratamento, no âmbito teórico do materialismo histórico, dispensado à chamada—na malfadada alegoria marxiana—superestrutura, propõe um reestabelecimento teórico desse legado, o qual passaria por Franz Mehring (1846–1919), Gueorgui Plekhanov (1856–1918), Eduard Fuchs (1870–1940) e culminaria no próprio Walter Benjamin. Como observa Ernani Chaves (Reference Chaves, Loureiro and Musse1998, 61): “Não é descabido dizer que Benjamin pretende inserir-se nessa tradição. Menos descabido ainda—pois nos parece ser essa a idéia que alimenta seu ensaio—é dizer que ele pretende não só inserir-se nessa “tradição”, como também fazer uma espécie de correção para refundá-la, desta vez, em bases que julgava mais sólidas”.

Sob esse viés, a despeito de a proposição do ensaio ser, efetivamente, a abordagem da obra de Eduard Fuchs—jornalista, caricaturista, escritor e historiador, famoso por suas coleções de arte erótica e caricaturas—Benjamin, como lhe é característico, aproveita a ocasião para, a partir da crítica de correntes hegemônicas do materialismo de então e do próprio Fuchs, que também as revela em sua obra, expor a sua concepção marxista da história, focalizando a possibilidade de uma nova teoria da cultura fundada na abordagem dialética da historicidade de seus elementos. Sobretudo, do ponto de vista teórico, como assinala Löwy (Reference Löwy2005, 29): “Nesse ensaio—que contém passagens inteiras que prefiguram, às vezes literalmente, as teses de 1940—ele ataca o marxismo socialdemocrata, mistura de positivismo, evolucionismo darwiniano e culto ao progresso”.

As críticas de Walter Benjamin se enquadram, historicamente, no contexto da hegemonia estabelecida pelo marxismo da Segunda Internacional (1889–1914), dominado por influências positivistas e darwinistas—Gueorgui Plekhanov e Karl Kautsky, por exemplo—, e da Terceira Internacional (1919–1943), cujas tendências neopositivistas se corporizariam na ideologia stalinista. Outro desdobramento teórico e político incisiva e criticamente combatido por Benjamin diz respeito àquele estabelecido pela Socialdemocracia—tendo em Ferdinand Lassalle (1825–1864) seu principal precursor e, em Plekhanov, um de seus principais expoentes, ambos, aliás, citados por Benjamin—, cuja incorporação de elementos evolucionistas rompe teoricamente com a filosofia marxiana.

Com efeito, inspirada por certa leitura das obras de Engels que tratam da dialética da natureza, a ortodoxia marxista substituíra, de forma peculiar, o “materialismo histórico” pelo “materialismo dialético”; ou seja, havia assumido o pressuposto de que o marxismo—simplificado em manuais de princípios fundamentais de aplicação e destituído de sua herança filosófica hegeliana—seria um método dialético universal, uma epistemologia total, que, a partir de leis gerais da natureza, poderia ser aplicado de forma indefectível às realidades social e natural de forma flagrantemente a-histórica. A esse marxismo diferentes correntes posteriores designariam, pejorativamente, como vulgar, mecanicista ou fatorialista.

De maneira inequívoca, a preocupação crítica e teórica que Benjamin assume nesse ensaio parece colocar em xeque algumas das leituras de seu legado feitas por Hannah Arendt (Reference Arendt2008, 122), para quem o pensador: “Estava evidentemente fascinado por aquilo mesmo que os outros rotulavam de pensamento ‘marxista vulgar’ ou ‘não dialético’”.

Nessa perspectiva, um dos equívocos teóricos mais criticados por Benjamin diz respeito à incorporação dos elementos positivistas e evolucionistas por teóricos da Socialdemocracia, o que culminaria na popularização de uma redução caricata do marxismo, largamente popularizada entre críticos a essa perspectiva teórica, dentro e fora da academia, os quais, ainda hoje, alardeiam um: “Pretenso ‘determinismo’ no pensamento Marxiano: a teoria social de Marx estaria comprometida por uma teleologia evolucionista—ou seja, para Marx, uma dinâmica qualquer (econômica, tecnológica etc.) dirigiria necessária e compulsoriamente a história para um fim de antemão previsto (o socialismo)” (Paulo Netto Reference Paulo Netto2011, 15)

Em contrapartida, a perspectiva crítica adotada por Walter Benjamin é diretamente tributária da leitura que ele fizera, nomeadamente, da obra de Lukács, História e consciência de classe, publicada em 1923, a qual, ao investir contra a leitura ortodoxa da “dialética da natureza” de Engels, afirmou a matriz filosófica hegeliana do materialismo histórico, colocando a “totalidade” e não o “determinismo econômico” como categoria central do pensamento marxista. Como se sabe, é essa matriz seminal que engendrará, ulteriormente, o desenvolvimento do chamado marxismo humanista, desdobrando-se, ainda, em perspectivas e eixos temáticos abordados pela teoria crítica—a partir da escola de Frankfurt—e pelos estudos culturais—Stuart Hall e Raymond Williams, entre outros.

No que diz respeito a seu ensaio sobre Fuchs, o ponto de partida de Benjamin para discutir a situação histórica do materialismo é uma passagem da carta de Engels enviada a Franz Mehring em 14 de julho de 1893. O excerto dessa carta encontra-se, inclusive, registrado no “banco de dados” dos fragmentos manuscritos de Benjamin para a obra das Passagens (Benjamin Reference Benjamin2018, 777). Ainda assim, é deveras bastante discutível o quanto, em sua exegese, Benjamin se afasta da interpretação corrente das proposições de Engels expressas na carta ou, até mesmo, as reformula em benefício de suas próprias concepções (Chaves Reference Chaves, Loureiro and Musse1998, 62–66).

De qualquer forma, a carta de Engels apresenta basicamente uma crítica a quatro aspectos comuns a certas leituras da realidade: a aparência de uma autonomia histórica dos elementos da “superestrutura”; a leitura desses mesmos elementos dentro de uma perspectiva de desenvolvimento progressista ao longo da história; a segmentação abstrata das áreas do conhecimento; e a negação da historicidade como processo totalizante. Por sua vez, Benjamin, em sua interpretação da carta, ressalta nela uma crítica à aplicação de uma noção de “progresso” dentro da história das ideias; assim como à alienação dos fenômenos culturais em relação à totalidade histórica que os abarca.

A crítica à história linear e ao progresso histórico desembocam na necessidade de se considerar a “pré-história” e a “pós-história” das obras de arte e dos fenômenos culturais em geral em sua análise dialética; isto é, integrá-los à dinâmica histórica de cuja totalidade constituem um fragmento. Esse processo, todavia, não é definitivo, mas constante devir, uma vez que se faz a partir do momento presente. Nesse sentido, Benjamin (Reference Benjamin2012, 128) assinala o: “Desassossego pelo desafio ao investigador no sentido de abandonar a atitude tranquila e contemplativa em relação ao seu objeto, para tomar consciência da constelação crítica em que se situa precisamente esse fragmento, precisamente nesse presente”.

O reconhecimento dessa constelação crítica, por parte daquele que perscruta a história, em que os fragmentos são conjugados em uma disposição que articula suas tensões recíprocas, culmina na formulação daquilo que Benjamin nomeia ora como mônada, ora como imagem dialética. Este procedimento crítico não só desconstrói a continuidade histórica do progresso, mas também engendra uma singularidade—na acepção, mutatis mutandis, que a física empresta ao termo—, ou seja, uma imbricação espaço-temporal em que momentos divergentes podem coincidir, adensando-se em um mesmo ponto, espacialmente instituído, para o qual convergem; ou seja, uma imagem. Na formulação sintética de Jorge Grespan (Reference Grespan2010), as mônadas são “las imágenes en que se presentan congeladas y sintetizadas las tensiones dialécticas del proceso más amplio”.

Entre outras passagens, Benjamin formula esse procedimento na 17º de suas Teses sobre o conceito de história: “A historiografia materialista subjaz, por sua vez, um princípio construtivo. Ao pensar pertence não só o movimento dos pensamentos, mas também a sua imobilização (Stillstellung). Onde o pensamento se detém repentinamente numa constelação saturada de tensões, ele confere à mesma um choque através do qual ele se cristaliza como mônada. O materialismo histórico se acerca de um objeto histórico única e exclusivamente quando este se apresenta a ele como uma mônada” (citado por Löwy Reference Löwy2005, 130).

Em suma, pode-se dizer que a mônada ou imagem dialética consiste em um condensado de totalidade histórica, construído dialeticamente, e que sua legalidade interna é constituída pela constelação de fragmentos expressivos cujas tensões, espelhamentos e contradições recíprocas são imageticamente paralisadas, como numa fotografia, pelo método benjaminiano.

Nesse sentido, a interpenetração de distintas temporalidades no interior da mônada, por meio das correlações analógicas registradas nesse fugaz vislumbre que se descortina diante do historiador revolucionário, engendra a possibilidade de reler, dialeticamente, a realidade. Como assinala Terry Eagleton (Reference Eagleton2010, 56): “O pensamento dialético, uma vez livre das correspondências frias entre mito e historicismo, deve começar a tecer a sua própria rede ‘mágica’ de semelhanças através da história, buscando a imagem dialética ou confronto chocante no qual um momento presente possa reler a si próprio no passado e permitir que o passado se interprete novamente no presente”.

Com efeito, a exposição dialética da história, em Benjamin, implica uma renúncia à postura passiva e contemplativa, traço característico do historicismo, em favor de uma construção. Sob esse viés, a matéria histórica não se oferece imediatamente—devendo antes ser elaborada pela mediação e intervenção críticas—e, amiúde, irrompe no exame dos resíduos, fragmentos e restos—que permitem descobrir “na análise do pequeno momento individual o cristal do acontecimento total” (Benjamin Reference Benjamin2018, 765).

A história, por contar, porque sempre inacabada, é, assim, um terreno propício para a compreensão política do presente. Ademais, essa concepção implica uma não segmentação do conhecimento, mas uma abordagem holística, na medida em que emana da investigação das conexões incontornáveis que vinculam na realidade histórica as diferentes áreas e percursos do conhecimento, cujos desdobramentos são codeterminados e interpenetram-se continuamente.

A dialética destrutiva e desconstrutiva proposta por Benjamin tem como alvo justamente uma concepção do processo histórico como uma sequência ordenada de sucessos e superações, cujo curso “normal” é regido pela necessidade inevitável do progresso. É essa continuidade histórica monológica e reacionária que a análise dialética pode—e deve—demolir. Esta é, com efeito, o instrumento que implode essa perspectiva ao desnudar as contradições que engendram a dinâmica social—unidades antagônicas cuja face mais atroz é convenientemente escamoteada pelas alienadas ciências especializadas do sistema capitalista.

Em relação à história da cultura, Benjamin vê essa proposição como ainda mais coerente, uma vez que as partes que compõem o todo cultural revelam-se inerentemente ainda mais dispersas na realidade sócio-histórica. Assim, esse “momento destrutivo” da análise dialética é o que viabilizaria uma apropriação, pelo presente e pelas classes subalternas, da herança tanto técnica quanto cultural legada pelos desdobramentos do passado. O materialismo histórico dialético, tal como Benjamin o compreende, assume o papel de reabilitar politicamente as articulações do passado com o presente numa síntese em que a estrutura significativa da realidade se revele ao historiador.

Todavia, essa revelação—retratada na ótica benjaminiana de maneira recorrentemente imagética—é sempre contingente, uma vez que não escapa à precariedade a que se subordina qualquer apreensão do real, o qual nunca se entrega em definitivo e não se esgota jamais nas leituras que dele somos capazes de fazer. Essa provisoriedade de qualquer composição dialética que busque captar um instantâneo da realidade é reforçada em Benjamin (Reference Benjamin2018, 759), para quem essa constelação saturada de tensões irrompe sempre de maneira súbita, repentina e efêmera—pois “o conhecimento existe apenas em lampejos”.

Nesse sentido, o passado do historicismo, do progresso e do cortejo triunfal dos vencedores só pode ser desmantelado pela força destrutiva da dialética, a qual, justamente por interromper essa barbárie continuada, surge em Benjamin, paradoxalmente, como paralisação, cesura e suspensão; ou seja, como “imagem dialética”. Tal concepção, que Jeanne M. Gagnebin (Reference Gagnebin2007) nomeia como antinômica, escapa a qualquer síntese definitiva e reconciliatória—comum à filosofia hegeliana em sua leitura mais corrente—pois só se revela num átimo, nesse tempo qualitativo afim ao kairós dos gregos; e, a despeito de ser criticada por Adorno, pode explicitamente ser encontrada no início de sua própria obra filosófica, Gagnebin precisamente observa.

Eduardo Galeano

Eduardo Galeano, escritor e jornalista uruguaio, é autor de diversas obras de ficção, política e história, tendo se consagrado após a publicação de sua obra Las venas abiertas de América Latina, em 1971. Por sua atuação como intelectual hispano-americano de orientação marxista, enfrentou a repressão política dentro e fora de seu país, sobretudo após os golpes militares no Uruguai e na Argentina. Assume perante esses regimes ditatoriais uma postura de denúncia que o obriga a exilar-se primeiramente na Argentina e, por fim, na Espanha, só retornando ao seu país em 1985, quando lá se inicia o processo de redemocratização. Para além dos regimes autoritários com que se defrontou mais diretamente, vivenciou tramas e dramas de um panorama marcado por golpes militares e subsequentes instalações de regimes ditatoriais direitistas, amiúde com o apoio mais ou menos direto dos E.U.A.—Paraguai, em 1954; Brasil e Bolívia, em 1964; Uruguai e Chile, em 1973; Argentina, em 1976; entre outros.

Sua peregrinação para salvar sua vida, então internacionalmente ameaçada, não impediu o desenvolvimento de uma produção literária constante. Muitas são as obras de sua autoria naquele período em que atua como uma voz de oposição perante toda a repressão sofrida pelo povo nos diversos países latino-americanos. De fato, em um período histórico no qual a liberdade de expressão é tolhida, os escritores, intelectuais e artistas dos mais diferentes seguimentos passam a ser perseguidos na América Central e do Sul e se tornam a voz representativa de uma maioria submetida aos horrores da ditadura militar. Essa postura engajada do escritor hispano-americano torna-se, para Ruffinelli (Reference Ruffinelli and Pizarro1995, 382), uma constante daquele momento histórico: “La apelación a la Revolución (como proyecto intelectual y como praxis) hizo del escritor latinoamericano, en algunos casos, algo más que un activista: lo hizo un revolucionario, conflictuado (o al fin aliviado) por la imagen de la opción tal como emblematizó”.

Assim, Galeano, como herdeiro desse legado político-ideológico, mas também estético, imprime em sua obra a denúncia própria de um jornalismo comprometido com o político, alternando-a com elementos literários apresentados em um discurso crítico autônomo. Para a crítica Mabel Moraña (Reference Moraña1995), esses dois discursos se fundem para formar uma nova forma narrativa denominada literatura de testemunho. Moraña (Reference Moraña1995) considera igualmente que a produção de Galeano é adjacente à literatura de cunho testemunhal, apesar de a base documental de sua obra se diluir sob uma elaboração poético-ensaística.

Assim, nessa proposta particular, a presença política da subjetividade autoral prevalece sobre toda possível objetividade e crueza do discurso jornalístico ou historicista. Desse modo, renuncia-se àquela credibilidade do texto final—pautada por uma pretensa objetividade neutra—em favor de uma concepção que o próprio Galeano (Reference Galeano2011b, 13–14) enuncia, de maneira cabal, ao comentar a tessitura de Memoria del fuego, sua obra-mestra:

La trilogía proviene de más de mil fuentes documentales. En ellas se apoya y desde ellas vuela, libremente, a su modo y manera. Las historias de Memoria del fuego ocurrieron en la realidad y no en mi imaginación; pero yo bien sé que quien copia a la realidad le traiciona los misterios. El lenguaje, que quiso ser desnudo y contagioso de electricidades, nació de la necessidad de decir la memoria de América y devolverla viva a sus hijos de ahora.

Uma tal abordagem se revela inequivocamente correspondente àquela que Benjamin articula em diversos momentos de sua obra. Ela perfaz-se em consonância com uma apropriação política do passado pelo presente; o que, dialeticamente, equivale também a uma desapropriação desse mesmo passado—usurpado pelo esvaziamento efetuado pelo discurso histórico oficial—, redimido, então, por sua atualização significativa. Terry Eagleton (Reference Eagleton2010, 73) também se mostra atento a essa questão, observando que, em Benjamin, “A história não é, portanto, simplesmente um construto teórico, mas político também”. O crítico britânico enfatiza, ademais, o contraste entre o caráter eminentemente político dessa percepção em contraste com a “arqueologia” da história de matriz foucaultiana: “o envolvimento em questão é prático bem como teórico, envolvendo um interesse emancipatório de proporções que a ‘arqueologia’ dos dias atuais só pode crer ingênuas” (73). Como postula o próprio Walter Benjamin (Reference Benjamin2018, 660): “A revolução copernicana na visão da história é a seguinte: considerava-se como o ponto fixo “o ocorrido” e conferia-se ao presente o esforço de aproximar-se, tateante, do conhecimento desse ponto fixo. Agora esta relação deve ser invertida, e o ocorrido, tornar-se a reviravolta dialética, o irromper da consciência desperta. Atribui-se à política o primado sobre a história. Os fatos tornam-se algo que acaba de nos tocar, e fixá-los é tarefa da recordação”.

De fato, se grande é a atuação de Galeano no terreno da política, visando à promoção da liberdade (nisso coincide com Octavio Paz), essa característica não poderia deixar de refletir-se em sua obra através da transcendência da ortodoxia dos gêneros canônicos, o que se constitui como uma entre tantas afinidades compartilhadas com Benjamin: a forma expressiva que comporta seu discurso. Trata-se, pois, de uma obra arquitetada a partir da experiência, por vezes baseada em observações particulares da realidade latino-americana de seu tempo, a que se somam o conhecimento do percurso histórico fomentador dessa mesma realidade e o inegável tratamento artístico.

A proposta de Galeano, como a de Paz, é a destruição das fronteiras entre os gêneros textuais, entre o jornalismo, a ficção, a análise social, o texto político e o histórico. Galeano mostra uma capacidade de mudança notável em seus métodos de composição e no estilo de sua obra desde o lançamento de Las venas abiertas de América Latina (1971) até sua morte em 2015. Porém, o que se mantém ao longo dessa trajetória do escritor é justamente a versatilidade de uma escrita leve e incisiva acrescida de um aprimoramento literário constante.

Desse modo, Galeano rompe os limites entre o texto que documenta um suposto real e a mais pura ficção e oferece, em algumas de suas obras—como em O livro dos abraços—, uma leitura de contos curtos, algumas vezes articulados em cinco ou dez linhas, em que o autor focaliza um caso—muitas vezes baseado em um evento empírico—que ilustra uma situação social; a qual, por meio do discurso literário, é denunciada politicamente. Esse tipo de postura é reincidente em suas produções e pode ser identificado também em Dias e noites de amor e de guerra e em Ser como ellos y otros artículos, compêndios que tematizam, respectivamente, suas experiências autobiográficas de exílio e suas memórias quando da pesquisa documental e coleta de informações/depoimentos para a produção de sua trilogia Memoria del fuego.

Os principais alvos da crítica de Walter Benjamin no que diz respeito à teoria da história, ou seja, o historicismo conservador, o evolucionismo da socialdemocracia e o marxismo vulgar, convergentes no que toca à apologia do progresso, correspondem, como já sinalizado, em Eduardo Galeano, ao que o pensador uruguaio frequentemente designa como história oficial. Essa, segundo Fischlin (Reference Fischlin2001, 107), “designates history from above, the kind of monolithic and widely disseminated history that refuses to examine the sources of its own judgements about naturalized power relations of advantage and disadvantage”.

Nas obras a que nos referimos, inúmeras são as menções que apontam criticamente para a prevalência hegemônica dessa história oficial, bem como para a necessidade de retomá-la, questioná-la, embatê-la. Desse modo, a exaltação de um passado estático e promulgado de acordo com os interesses específicos de determinada casta social é identificado e, assim como o historicismo já criticado por Benjamin, é também desmascarado por Galeano (Reference Galeano2015b, 371):

A veneração do passado sempre me pareceu reacionária. A direita elege o passado porque prefere os mortos: mundo quieto, tempo quieto. Os poderosos, que legitimam seus privilégios por herança, cultivam a nostalgia. Estuda-se história como se visita um museu; e essa coleção de múmias é uma fraude. Mentem-nos o passado como nos mentem o presente: mascaram a realidade. Obriga-se o oprimido a ter como sua uma memória fabricada pelo opressor, alienada, dissecada, estéril. Assim ele haverá de resignar-se a viver uma vida que não é sua como se fosse a única possível.

Trata-se da identificação da mesma pulsão tradicionalista e esterilizadora que ganha força nos tempos atuais; e que insiste em ecoar seu enfastiante discurso de enaltecimento de uma narrativa monológica, unidirecional e arbitrariamente imposta. Nas antípodas desse viés, Galeano, como narrador-testemunha da r(existência) latino-americana, expõe recorrentemente as estruturas e intencionalidades desse aparato de controle, bem como os desdobramentos decorrentes de sua manutenção.

Reflexo dessa tendência sistemática de perpetuação de um passado idealizado—combatida tanto por Benjamin quanto por Galeano—a glorificação dos elementos que simbolizam a narrativa histórica dos vencedores surge sempre como um recurso conveniente à classe dominante. Tais elementos se consolidam e se perpetuam nos monumentos e documentos da cultura, articulados enquanto instrumentos de poder, já desnudados dialeticamente por Benjamin (Reference Benjamin2012, 137):

Para o materialista histórico, a distância a partir da qual a história da cultura apresenta os seus conteúdos é ilusória e fundada numa falsa consciência. Por isso ele a olha com reservas. Essas reservas seriam legitimadas por um simples olhar para o passado: o que ele aí descobre de arte e ciência tem uma proveniência que não pode deixar de horrorizá-lo. Tudo isso deve a sua existência não apenas ao esforço dos gênios seus criadores, mas também, em maior ou menor grau, à escravidão anônima dos seus contemporâneos. Não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie. Nenhuma história da cultura fez ainda justiça ao que de essencial há nesse fato, e dificilmente pode esperar fazê-lo.

Novamente, em consonância com a crítica benjaminiana, que afirma que seriam esses mesmos ícones do discurso historicista condensações da somatória de todas as atrocidades ocorridas, sendo justamente esta a condição sine qua non para sua elevação a tal status, Eduardo Galeano propõe em “El Nobel y el nadie”, um dos artigos de Ser como ellos y otros artículos, a contraposição da figura de Francisco Antonio Maciel—o qual fora ensinado a venerar em sua infância e que descobre, quando de suas pesquisas para a produção de Memoria del fuego, ter sido um traficante de escravos—à imagem esquecida de certo professor primário: Simón Rodríguez, “el loco”, como era conhecido o militante venezuelano que peregrinava pelo país denunciando os poderosos enquanto meros reprodutores dos interesses estadunidenses. O primeiro é reverenciado sob o epíteto “el padre de los pobres”; o segundo, relegado ao apagamento completo de um “ninguém”. Dessa comparação, conclui o escritor uruguaio: “Las estatuas que sobran son casi tantas como las estatuas que faltan” (Galeano Reference Galeano2011b, 17).

Outro indício desse posicionamento político que permeia a produção galeana e que espelha os ideais de Walter Benjamin é uma frequente crítica ao conceito de progresso e às atrocidades cometidas em seu nome: “Não tem sido a nossa história uma contínua experiência de mutilação e desintegração, disfarçada de desenvolvimento? Séculos atrás, a conquista arrasou os solos para implantar culturas de exportação e aniquilou as populações indígenas nos socavões das minas e nas lavagens para satisfazer a demanda de ouro e prata de ultramar. A alimentação da população pré-colombiana que conseguiu sobreviver ao extermínio piorou com o progresso alheio”.

Nesse sentido, a denúncia realizada desde Las venas abiertas de America Latina quanto à condição de contínua espoliação e exploração dos países colonizados adquire, em sua produção subsequente, traços cada vez mais elaborados literariamente, em uma combinação de texto jornalístico, crônica, microconto e ensaio histórico—uma composição que amalgama o relato testemunhal, apoiado em sua credibilidade autobiográfica, em um reconhecido tratamento estético para sua enunciação.

Assim, em seguimento à imagem consciente de uma dinâmica de opressão e controle político e econômico criticada no clássico de Eduardo Galeano, em suas produções seguintes, o autor engendra, em tom mais narrativo, a denúncia da perpetuação do modus operandi legado pelos colonizadores ao território latino-americano, salientando que, sobretudo para essa região, desde o processo de colonização, a manutenção da violência e da expropriação é o único progresso programado: “Em nome da modernização e do progresso, os bosques industriais, as explorações mineiras e as plantações gigantescas arrasam os bosques naturais, envenenam a terra, esgotam a água e aniquilam pequenos plantios e as hortas familiares” (Galeano Reference Galeano2015a, 6).

Tais são as afinidades entre o pensamento benjaminiano e as proposições de Galeano que o autor uruguaio chega mesmo a enunciar, como o pensador alemão já o fizera em suas Teses sobre o conceito de história, sua própria imagem do cortejo dos vencedores; vestígio que, uma vez mais, nos reconduz à indagação: seria Eduardo Galeano leitor do pensador alemão? “Los vencedores, que justifican sus privilegios por el derecho de herencia, imponen su propia memoria como memoria única y obligatoria. La historia oficial, vitrina donde el sistema exhibe sus viejos disfraces, miente por lo que dice y más miente por lo que calla. Este desfile de héroes enmascarados reduce nuestra deslumbrante realidad al enano espectáculo de la victoria de los ricos, los blancos, los machos y los militares” (Galeano Reference Galeano2011b, 11–12).

Como se vê, o continuum histórico urdido a partir das e para as classes dominantes e enunciado pela história oficial—que Benjamin descreve em sua tese VII na forma de um “cortejo de triunfo que conduz os dominantes de hoje [a marcharem] por cima dos que, hoje, jazem por terra” (citado por Löwy Reference Löwy2005, 130)—assume, em Galeano, os contornos de um espetáculo conjugado pelo desfile de “heróis” mascarados: cortejo triunfal que exalta epicamente os vencedores ao passo que oblitera a memória e a tradição dos oprimidos.

Galeano, entretanto, e nisso converge uma vez mais com Benjamin, nega-se a reconhecer-se impotente e a manter-se inerte frente ao mecanismo operante que idealiza um passado meticulosamente fabricado e elege seus ídolos destroçando e apagando aqueles que a ele se opõe em nome de um fantasmagórico progresso; cristalizando-se, por fim, no “cortejo de triunfo”—unidade dialética de civilização e barbárie. Antes, o escritor uruguaio subverte a lógica imperante, justificando não o momento presente pela existência de um passado ilibado e irreversível, mas sim imputando como desdobramento de um passado flagelante um presente inerte e ao revés: “La historia está patas arriba porque la realidade presente anda cabeza abajo” (Galeano Reference Galeano2011b, 17).

Para Benjamin (Reference Benjamin2012, 129), a conservação de um passado estático é condição apriorística para sua imortalização e inquestionável permanência: “O historicismo propõe a imagem eterna do passado; o materialista histórico fá-lo acompanhar de uma experiência que é única. A substituição do momento épico pelo construtivo revela ser a condição dessa experiência”. Galeano (Reference Galeano1978, 179), por sua vez, espelha consideração similar em Dias e noites de amor e de guerra: “Para colonizar as consciências, suprimi-las; para suprimi-las, esvaziá-las de passado”.

Dessarte, torna-se fundamental uma tomada de consciência acerca da potencialidade de se desviar o curso desse passado quimérico a fim de viabilizar sua ruptura. Galeano (Reference Galeano2011b, 13) considera, bem como seu predecessor, o transcorrido como algo animado e atuante, um passado vivo cuja redenção seria nossa incumbência: “Memoria del fuego está escrita en tiempo presente, como si el pasado estuviera ocurriendo. Porque el pasado está vivo, aunque haya sido enterrado por error o infamia, y porque el divorcio del pasado y el presente es tan jodido como el divorcio del alma y el cuerpo, la conciencia y el acto, la razón y el corazón”.

Com efeito, alheio a qualquer pessimismo imobilizador, Galeano (Reference Galeano2015b, 370) nos convoca a modificar esse pretérito simulado, alterando assim o presente e o devir: “Não será a desgraça um produto da história, feita pelos homens e que pelos homens, portanto, pode ser desfeita?”.

Recurso estratégico para essa ruptura consiste, precisamente, em fornecer voz ao passado, fazendo reverberar o grito daqueles que foram anteriormente calados, que tiveram seus discursos omitidos e sua existência negada: “El pasado mudo me aburre. Memoria del fuego quisiera ayudar a que se multipliquen las volanderas voces que vienen del pasado, pero suenan como de ahora y hablan a los tiempos por venir” (Galeano Reference Galeano2011b, 19). A narrativa de Galeano afirma-se assim como discurso alternativo ao cânone, catalisador de lutas reivindicativas e políticas aplicadas por meio da legitimação dos discursos não dominantes.

Outro recurso expressivo observado advém dos procedimentos analógicos presentes na produção do escritor latino-americano. Como já se pontuou, parece-nos possível estabelecer uma correspondência entre aquilo que Benjamin designa como mônada ou imagem dialética e o que, em Galeano, aparece frequentemente sob a denominação de metáfora. Nessa perspectiva, a seguinte passagem do autor uruguaio se revela profundamente significativa:

Memoria del fuego cuenta mil momentitos de la historia. Momentitos como éste, reveladores de la maravilla o el espanto de la aventura humana em América. Porque toda situación es el símbolo de muchas, lo grande habla a través de lo chiquito y el universo se ve por el ojo de la cerradura. La realidad, insuperable poeta de sí misma, habla un lenguaje de símbolos.

Yo empecé a escribir la trilogía el día que me di cuenta de algo que me resulta, ahora, evidente de toda evidencia: la historia es una metáfora incesante. (Galeano Reference Galeano2011b, 14)

Em sua digressão metaliterária, convém destacar o postulado de se reelaborar a história a partir do fragmento, dos “momentitos” olvidados pela história oficial. Em flagrante afinidade com as ponderações benjaminianas, há aqui uma intersecção entre micro e macrocosmo pela qual fenômenos categoricamente distanciados—seja no itinerário diacrônico, seja no espaço geográfico ou, ainda, na esfera da realidade em que estejam inseridos—podem, todavia, espelhar-se mutuamente, cristalizando-se ao atingir a foz da imagem-símbolo que lhes apreende. Dessa feita, a realidade histórica, dialeticamente arrancada à homogeneidade do continuum, surge como mônada: metáfora de si mesma, incessante encontro entre o um e o outro, entre o todo e a parte.

Assim, se o escritor uruguaio afirma expressamente que: “La memoria que merece rescate está pulverizada. Ha estallado en pedazos” (Galeano Reference Galeano2011b, 12), parece-nos impossível não vislumbrar aí os ecos da formulação metodológica benjaminiana constante de um excerto do projeto das Passagens: “Não surrupiarei coisas valiosas, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Porém, os farrapos, os resíduos: não quero inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os” (Benjamin Reference Benjamin2018, 764).

De outro lado, a formulação de Adorno (Reference Adorno2012, 17–18) também se mostra condizente com esse entrecruzamento metodológico entre os dois autores: “a pletora de significados encapsulada em cada fenômeno espiritual exige de seu receptor, para se desvelar, justamente aquela espontaneidade da fantasia subjetiva que é condenada em nome da disciplina objetiva”.

Eduardo Galeano lança mão desses procedimentos combativamente, semeando imagens dialéticas que—em sua tessitura de constelações históricas disruptivas—revelam aquelas frestas da realidade pelas quais se pode alcançar o “encontro secreto com o passado” de que falara Benjamin na segunda de suas Teses sobre o conceito de história. Nesse sentido, “Todo lo que em América había ocurrido, de alguna misteriosa manera me había ocurrido, aunque yo no lo supiera, y los personajes de su historia eran gente que yo había amado, o había odiado, aunque lo hubiera olvidado, o creyera que lo había olvidado. Un viaje del yo al nosotros: diciendo a América, me decía. Y buscándola, me encontraba” (Galeano Reference Galeano2011b, 20–21).

Vê-se aqui que o método de privilegiar os estilhaços da cultura enquanto elementos microscópicos, mas que correspondem, dialeticamente, ao processo telescópico, reverbera também na relação entre indivíduo e coletividade. Assim, a narrativa de Galeano, por vezes, explicita os pormenores de uma história interior com a qual se inter-relacionam experiências mais amplas, que confluem para eventos significativos de transcendência coletiva. A partir da subjetividade de histórias periféricas introduz-se, assim, reflexões de alcance mais vasto, que dão voz a discursos que são, por sua natureza marginal, anti-hegemônicos: “Los esclavos también trajeron, desde el África, la antigua certeza de que todos tenemos dos memorias. Una memoria, la memoria individual, vulnerable al tiempo y a la pasión, como nosotros, a morir; y otra memoria, la memoria colectiva, destinada, como nosotros, a sobrevivir” (Galeano Reference Galeano2011b, 18)

Enfim, partindo do diagnóstico fundamental, já enunciado por Daniel Fischlin (Reference Fischlin2001, 108), de que “Galeano’s method is closely aligned with Walter Benjamin’s notion of historical materialism”, buscou-se, na breve reflexão que ora se apresenta, esquadrinhar algumas das correspondências possíveis entre esses dois autores. Nesse sentido e à guisa de conclusão, reiteramos a hipótese fundamental que constituiu o motor das correlações aqui esboçadas, a saber, que as analogias analisadas entre Walter Benjamin e Eduardo Galeano se articulam dialeticamente para engendrar uma constelação crítica, conjugando histórias e estórias.

Para além de qualquer discussão teórico-metodológica, gostaríamos de enfatizar que Eduardo Galeano, nos termos dessa trama constelar, parece, com efeito, corporificar em sua obra a práxis preconizada por Walter Benjamin. Nesses termos, enraizado na sentença radical de que “Toda memória é subversiva, porque é diferente, e também qualquer projeto de futuro” (Galeano, Reference Galeano2015b, 395–396), o conjunto da produção do grande ensaísta uruguaio se distingue por ser, talvez, uma das mais bem-sucedidas materializações daquilo que constitui o cerne da teoria benjaminiana, ou seja, a tarefa de escovar a história a contrapelo.

Footnotes

1 Ao tratar das correlações culturais entre, por um lado, a forma ideológica individualizada dos desdobramentos religiosos da Reforma Protestante e, por outro, o ethos historicamente engendrado pela consolidação do capitalismo, Max Weber (Reference Weber2004, 82–83) emprega o célebre conceito de “afinidades eletivas”, com o qual sinaliza a ocorrência de interações e convergências socioculturais específicas em meio à “barafunda de influxos recíprocos” entre fatores materiais, sociais, políticos e culturais. A noção de “afinidade eletiva” de que Weber lança mão é oriunda da obra homônima de Goethe, o qual, por seu turno, resgatara esse conceito da Química anterior à tabela periódica, em que se acreditava em certas “afinidades eletivas” entre determinados elementos.

2 Einfühlung é o conceito empregado por Benjamin na VIIª de suas Teses sobre o conceito de história; equivale a uma espécie de empatia que, no caso do historicismo, se perfaz pela identificação afetiva e conformista dos historiadores com as classes dominantes (Löwy Reference Löwy2005, 71).

References

Referências

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