A obra Les Portugais en Extrême Orient: Fernão Mendes Pinto, un précurseur de I’exotisme au XVIème siecle, de Georges Le Gentil, que constituiu marco importante no estudo da Peregrinação e que data já de 1947, revela-se-nos bastante significativa, em termos de proporcionalidade, de como tem sido investigado Fernão Mendes Pinto e a sua obra: na verdade, o professor francês dedica grande parte da sua obra ao “valor documental” da Peregrinação, enquanto ao “valor literário” apenas consagra um terço do volume. Não o registamos como crítica negativa, mas tão-somente como modo de chamar a atenção para o que, na realidade, durante muitos anos, foi feito em relação ao autor e à obra que agora nos ocupam. O estudo do significado documental da obra de Mendes Pinto é indubitavelmente tarefa importante. Em boa verdade, quase ficamos confusos, quando temos de reconhecer que a sua prioridade deve constituir primeira fase da elucidação do texto desta obra ou, se quisermos, tarefa imprescindível para uma mais completa análise do texto, enquanto mensagem narrativa e autobiografia literárias.
Fernão Mendes Pinto dir-nos-ia que escreveu o que, sendo homem, português e cristão, fez, viveu, viu e ouviu. Estamos convencidos de que sobretudo registou o que viveu e viu: “E digo isto porque assim o posso afirmar com verdade, pois ambos estes sucessos vi com meus olhos, e em ambos me achei presente com assaz de perigo meu” (cap. CC). Podíamos acrescentar que essa primeira intenção se conjugou com outra: a de transmitir o que ele soube ou que outros lhe transmitiram, e mesmo o que ele julgou (ou imaginou) viver, ver e ouvir.
Contudo, não é lícito que a obra continue a ser desvalorizada por se julgar que não constitui um registo decididamente historiográfico. Não foi esse o objectivo do seu autor. Pelo contrário, urge que ela seja reconhecida como o que quis logo ser: uma narrativa não obrigatoriamente histórica, com proximidade muito grande à autobiografia ou, como queria Fidelino de Figueiredo, uma “autolatria”. Actualmente até sabemos que o realismo, a objectividade, a fidelidade totais são características muito relativas em géneros como a autobiografia, o diário, as memórias (Lejeune, Rocha): aquele que se conta nunca é aquele ou aquilo que realmente é, só o é em parte, e talvez apenas seja aquele ou aquilo que julga ou imagina ser.